A imagem - Filosofia da caixa preta [Vilem Flüsser, 2011]

               No ensaio intitulado A imagem, Flüsser vai aprofundar na realidade da imagem no seu sentido mais amplo; desde os pormenores estritamente físicos, passando pela natureza e idiossincrasia humana até a dimensão intelectiva e inefável, com uma grande influência de base da teoria platónica das idéias e tratando, de fato, de propor uma explicação semiótica a um processo complexo e multidisciplinar. De partida Flüsser afirma que a imagem é uma superfície representativa, resultado da abstração imaginativa de duas das quatro dimensões, embora depois seja possível recuperar as dimensões discriminadas nessa realidade. A imaginação segundo Flüsser, como processo fundamental e imprescindível, é tanto a capacidade que permite abstrair as imagens em símbolos planos (recorrência às teorias simbolistas) como a capacidade que permite decodificar essas imagens abstraídas, portanto é fundamental no processo de emissão e recepção de informação através do sentido visual e o que a posteriori também terá que ver com ele. Aqui ele introduz, de forma indireta, o esquema da comunicação de Jackobson e todas as alterações, matizes e inquietações que foram levantadas a propósito dessa outra teoria da comunicação linguística e não só. Na dimensão anatómica, fisiológicas e motora do aparelho visual Flüsser expõe muitos detalhes, ele afirma que com um golpe de vista só se permite obter a informação mais básica e superficial, mas que é preciso retomar circularmente a imagem em várias ocasiões -o scanning- para obter outra informação aparentemente mais profunda, numa clara oposição a essa outra informação mais superficial. Nesse processo de escaneamento da imagem se estabelece uma hierarquização temporal, uma ordem de análise, primeiro repara-se nuns elementos e depois noutros e é por isso que nessa ordem se estabelece um registo de elementos atuais, outros elementos anteriores ao atual e outros posteriores ao atual, tendo em conta a tendência circular do movimento ocular. Todas essas relações bilaterais ou multilaterais são significativas, são, por palavras de Flüsser: «mágicas [sic]». Essa temporalidade relativa às vezes é diferente à real, como não podia ser de outra maneira, dependendo do ponto de partida, coisa que habilita o processo da visão e decodificação da imagem através da imaginação, logo é mais flexível que a realidade. Para Flüsser o homem existe no mundo mas precisa das imagens para compreendê-lo, é como se de um mapa se tratasse, deturpado por vezes tornando um biombo e não deixando ao homem acessar à verdade universal. Aqui se pode apreciar um certo pessimismo epistemológico de deontológico, os sentidos nos fornecem informação veraz e fiável? O mundo está escondido sob as imagens? Flüsser também acredita que a escrita linguística e matemática é a abstração ao máximo nível já que se prescinde quase na sua totalidade de todas as dimensões. Os textos são abstrações das imagens que ao mesmo tempo são abstrações do mundo, portanto poderíamos sintetizar isto em que para Flüsser os textos são écfrasis -assunto recorrente dos estudos de Clüver-, são metacódigos em constante confronto com as imagens e com o mundo; como exemplo coloca a luta medieval entre cristianismo textual e paganismo imagético, é um bom exemplo porque é original e inegavelmente plausível.

               A idéia mais genuína de Flüsser é a questão da magia que permite obter o significado das imagens; é verdade que as imagens não eternalizam eventos, elas substituem eventos por cenas, trata-se da dialética interna da imagem que se manifesta de uma forma extraordinária. Isto é um matiz muito singular que abre uma nova forma de perceber o mundo através das imagens, de fato vai mais além do razoamento que qualquer pessoa teria de partida sobre o assunto. Nesse tempo mágico uma coisa explica as outras e pode acontecer também vice-versa. O valor mágico das imagens é essencial para descodificar os seus significados, uma imagem é uma tradução de processos em situações. Essa magia permite às imagens técnicas mediar entre o mundo e o homem, daí a relevância desta asseveração. Durante todo o ensaio se apresentam várias dicotomias matizadas que permitem aprofundar na questão e compreender a dimensão de um processo aparentemente tão banal e quotidiano como a ação de ver; emissor vs. receptor, informação superficial vs. informação «profunda ou aprofundada [sic]», conotação vs. denotação, diacronizar vs. sincronizar e por aí fora. Em definitiva Flüsser expõe a sua cosmovisão pessoal da imagem e tudo o que tem a ver com ela, segundo a sua importância e transcendência.

Modernização dos sentidos - A mídia literatura [Ulrich Gumbrecht, 1998]

               Gumbrecht preocupa-se por uma questão propriamente originária da Teoria da Literatura e dos Estudos Interartes. O que é a literatura? O que é a mídia? A literatura é mídia? Todas estas questões, longe de receber respostas universais, estão sendo constantemente levantadas pelos intelectuais à procura de uma realidade que, mais que natural, parece um assunto convencional. Todo o mundo sabe diferenciar inconscientemente o que é literatura do que não é, mas ninguém sabe defini-lo. É por isso que a Teoria da Literatura chegou, segundo o meu entender, à boa conclusão de que «a literatura é tudo aquilo que a sociedade considera literatura [sic]». A mídia, nos diz Gumbrecht, é aquilo que permite a comunicação embora não contemos com o contexto temporal nem o contexto da proximidade idôneos, portanto a mídia faz funcional a comunicação quando há elementos do esquema da comunicação de Jakobson que não o permitiriam numas condições de ausência desse suporte mediático, né? A literatura então poderia se considerar mídia? Vamos ver. Mesmo o emissor e o receitor, o autor e o leitor, o produtor e o consumidor (sem entrar em considerações taxonômicas) não compartam os contextos de espaço e tempo por ser a literatura uma potencial mídia, se estabelece um vínculo entre o autor e o leitor, uma «intimidade imaginada [sic]» determinada pela direcionalidade rígida do processo comunicativo por questões obvias até concluir no receptor, essa virtual sensação de intimidade termina quando o leitor conclui a sua leitura portanto é fictícia, produto da ficção literária. Ambos compartem a situação na qual os dois não precisam de ficar sabendo do outro, isto acontece de forma sistemática. Sabemos que o fato de que o leitor ficar sabendo do autor e vice-versa estraga o «horizonte de expectativas» fazendo que se estabeleçam relações arbitrária com a vida e circunstâncias tanto do autor como do leitor, provocando além disso que por ambas partes se possa esquecer que a literatura é ficção, convenção e instituição, e desse jeito se deturpar a manifestação cultural objeto de análise. A relação textual com o mundo ao qual chamamos real, é segundo Gumbrecht, não importante, ao que eu acrescento que é desejável.

               Gumbrecht acredita que a condição literária supõe de forma clara uma mais-valia, a mais-valia da literatura como forma, resgatando claramente as teorias do formalismo russo que foram determinantes na evolução da Teoria literária. É indiscutível que a literatura é forma, pois todas as manifestações artísticas e comunicativas são formas, sem esquecer de precisões e exceções dilucidadas após as teorias literárias do século passado e anteriores. O formalismo russo parte de que todas as manifestações artísticas sejam elas quais foram o são precisamente porque produzem um «estranhamento» ou «desautomatização» do objeto em questão no processo de percepção ou imput. O gosto humano pelas manifestações culturais em geral e da literatura em particular radica do gosto pela forma, pela estética pelas qualidades que provocam essa «desautomatização» da percepção. 

               A terceira asseveração, e para mim a mais importante de Gumbrecht, é a ficcionalidade da Literatura, e por extensão das artes. Ele é consciente de que a literatura separa e transgrede a realidade, o mundo que chamamos real do mundo irreal ou como chamá-lo-iam os teóricos da literatura o mundo dos mundos possíveis. O que verdadeiramente vale a pena da literatura é que não é realidade ou pelo menos tenta não ser realidade. Vale a pena porque foge dela e nessa fugida encontra liberdade, conforto e magnificência.