Comunidade luso-castelhana? Iberismo?

               Apesar da inegável situação de multiculturalidade que tem lugar na Península Ibérica já desde a outra era devido a questões geoestratégicas, de fornecimento de recursos, rotas comerciais e por aí fora, e também apesar da metamorfose que por ventura o tempo aplicou à configuração da gestão dos territórios peninsulares ao longo dos séculos e que conclui com o estabelecimento e consolidação de duas nações separadas por uma fronteira administrativa (Portugal e a Espanha); existiram e até hoje existem motivos aparentemente sólidos para pensar que a amálgama de povos heterogéneos que povoaram, evoluíram e se misturaram na península fundada segundo as escrituras da mitologia clássica pelo semideus Hércules, compartem uma essência comum que é claramente um indício de que estamos a tratar de uma unidade complexa, mas unidade a fim de contas. Isto é, portanto, uma estrutura na qual unidades menores -os diferentes povos-, distribuídos pela geografia político-administrativa peninsular em dois países e subdivididos em regiões com fronteiras inspiradas nos acidentes orográficos e não só -que desde o ponto de vista cultural é uma realidade totalmente virtual, coercitiva e imprópria-, conformam uma unidade que lhe é imediatamente superior e integradora, essa unidade superior é a comunidade ibérica, por propor uma taxonomia neutra a uma cultura de culturas como esta que estou tentando simplificar. A comunidade ibérica, tendo em conta as teorias interdisciplinares que Benedict Anderson vem a expor na monografia «As comunidades imaginadas», mostra de maneira sutil evidencias obvias da sua existência. Estas evidências podem ser extraídas e analisadas de qualquer uma das manifestações culturais peninsulares sem prejuízo de que se manifestem de uma forma mais notória numa cultura que noutras ou sejam total ou parcialmente equiparáveis aos fenômenos das culturas vizinhas. Para provar a existência dessa comunidade imaginada, como a denominaria o senhor Anderson, vou focar o escopo deste ensaio na literatura peninsular para constatar que também nessa manifestação há uma «comunidade interliterária luso-castelhana» que vincula aos povos aos dois lados da fronteira.

               Tomemos em consideração, por exemplo, o caso do poeta e dramaturgo Gil Vicente (1465 - 1536?). Estamos a tratar do contexto cultural de finais do século XV e princípio do século XVI, em Portugal sob o governo de Manuel I em substituição do seu primo João II e na recente e unificada Espanha sob o governo dos Reis Católicos. Nesse momento existiam sete áreas de influência linguística; galego-português, astur-leonês, castelhano, vasco, navarro-aragonês, catalão e moçárabe. Mesmo com essa realidade plurilinguística complexa, sintoma dessa multiculturalidade da qual falei anteriormente, podemos apreciar na península, abstraindo os matizes próprios da estratoletologia ibérica, situações convergentes e em constante mudança de; monolinguismo -próprio das classes trabalhadoras excluindo ao baixo clero-; bilinguismo muito consolidado -próprio das classes médias e sobretudo altas- por vezes provocando até situações de diglossia como em Portugal na corte de Manuel I e sucessivos, e também situações de multilinguismo -em períodos históricos concretos por questões históricas-, sem esquecer da supremacia do português e o castelhano perante outras línguas de caráter regional ou até dialetal. Isto é também um fator singular que nos ajuda a compreender a dimensão de comunidade ibérica. Retomando a Gil Vicente como exemplo desta existente «comunidade interliterária luso-castelhana» pode-se atestar que ele é um dos exponentes mais visíveis desta comunidade, Vicente era bilíngue diglóssico em português e espanhol. Ele trabalhou como funcionário real prestando os seus serviços de entretenimento e até de conselho, era apreciado pelo seu mecenas o rei de Portugal num momento da história no qual a língua de moda na corte portuguesa era o castelhano desde meados do século XV até 1700 (gerações educadas antes da restauração de 1640). Gil Vicente foi um aluno dessa geração, tendo grande influência hispanófona quando na península ibérica os diferentes povos, apesar das fronteiras, ainda tinham consciência de comunidade ibérica, assunto recorrente e atestável através das manifestações literárias finisseculares. Escritos na Torre do Tombo registavam esta situação: «Falava-se tanto ou mais castelhano quanto mais se subia na escala social [sic]». Nessas cortes hispanizadas Gil Vicente assumiu o bilinguismo diglóssico de forma natural e intercalou ambas línguas nas suas obras. A seleção da língua ou línguas cujas obras fazia era uma questão de inspiração, quando uma personagem era inspirada no mundo espanhol usava o espanhol, por exemplo, quando uma personagem viajava constantemente entre os dois reinos acostumava a ser bilíngue.

               As línguas aparecem no seu discurso de forma hierarquizada. Gil Vicente ignora o «patriotismo linguístico» ele tem uma consciência da península ibérica como uma unidade indivisível, independentemente da situação política vigente. Não podemos esquecer que naquela época o português e o castelhano eram muitíssimo parecidos, se produzia a aquisição sistemática e abusiva de lusitanismos em Espanha e vice-versa de forma muito recorrente. Gil Vicente controla todas as variedades diafásicas e diastráticas das duas línguas. Portanto a visão do português e o castelhano, era a visão de dois dialetos do latim vulgar, e assim o vemos nessa «comunidade interliterária luso-castelhana», na qual é possível contrapor por similitudes e alusões constantes aos dois lados da fronteira a Gil Vicente e a Juan del Encina por experimentar ambos dois o fenômeno objeto deste ensaio. Juan del Encina também inaugurou o teatro sofisticado em espanhol e há obras em português que os expertos acreditam que são da sua autoria, ambos dois recorrem aos mesmos temas e tópicos literários como os pastoris, compartem também histórias para as obras como aconteceu em Auto del Repelón e a obra similar de Gil Vicente...

               Portanto houve uma «comunidade interliterária luso-castelhana»? Sim, e não só; essa comunidade ibérica existiu e pode ser que até hoje exista, embora a Restauração da Independência Portuguesa vai pôr fim a esta situação de bilinguismo e diglossia na península, e vai iniciar um processo de segregação dos povos peninsulares até a chegada do romantismo que vai supor a eclosão dos nacionalismos e de alguma maneira o fim dessa consciência integradora comum dos moradores da Península Ibérica.

Bibliografia

  • ANDERSON, Benedict R. Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism (Revised and extended. ed.).. 2.a ed. [S.l.]: Verso, 1991. p. 224. ISBN 978-0-86091-546-1.
  • MARQUES DA CRUZ, José. História da Literatura. [S.l.]: Brasiliense, 1939. 215 p.
  • VICENTE, Gil. Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente. 1 ed. Lisboa: Casa de Joam Alvarez, 1562.
  • M. WILSON y DUNCAN, Historia de la literatura española, vol. 3: Siglo de Oro: teatro (1492-1700), Barcelona, Ariel (Letras e Ideas; Instrumenta, 3), 1974, pág. 19. ISBN 84-344-8306-8.